29 Março 2023
A Venezuela viveu do extrativismo do petróleo por cem anos, e hoje caminha para um extenso e intenso extrativismo mineiro devastador. Porém, com governos de direita e de esquerda, o país está entre os territórios com maior pobreza e fome do mundo. Para entender esse grande paradoxo, conversamos com Emiliano Terán Mantovani (Caracas, 1980), sociólogo pela Universidade Central da Venezuela, pesquisador e ecologista político, ativista contra o extrativismo e pela justiça socioambiental na América Latina e membro do Observatório de Ecologia Política da Venezuela.
Terán analisa nesta entrevista os "padrões de expansão capitalista que se repetem em todo o mundo", com atenção voltada para a América Latina e, sobretudo, para a Venezuela. O pesquisador explica que é "o governo bolivariano que assume, formaliza e promove as novas formas de intervenção extrativista" e acusa o norte global, China e Rússia de transformar o país "numa zona de grande sacrifício, porque o que eles precisam é é extrair os recursos”.
A entrevista com Emiliano Terán Mantovani é de David Roca Basadre, publicada por Ctxt, 27-03-2023.
Em que momento a Venezuela deixou de usar o potencial agrícola que possui, com tantas terras boas para a agricultura e uma invejável oferta de água?
Para entender a Venezuela, de fato, não é só ver o modelo do petróleo, mas também saber como chegamos lá. Historicamente, como todos os países latino-americanos, fomos configurados com uma função extrativista agrícola (café, cacau...) para o mercado capitalista mundial.
A Venezuela veio de ser um dos países latino-americanos mais atingidos por guerras civis. Enquanto em alguns outros países latino-americanos no século XIX já se consolidavam as economias e os Estados, na Venezuela as guerras civis deixaram o país devastado.
Mas de repente, no início do século 20, a Venezuela se tornou o primeiro exportador de petróleo do mundo. E esse contraste entre um país absolutamente destruído, que de repente se torna um país que terá uma das principais receitas do extrativismo na América Latina, com crescimento econômico acelerado, mesmo com indicadores que só puderam ser vistos em países europeus, além de trazer consigo é um processo muito acelerado de urbanização, de mudanças de estilo de vida, de renda, devido ao trabalho da indústria do petróleo, sobretudo vai gerar uma espécie de choque no país. E isso também será um choque cultural. Bem, essas pessoas principalmente urbanizadas começaram a se mobilizar socialmente em direção a um modo de vida muito moldado pelo modo de vida americano.
Esta mudança cultural teve e tem impactos negativos muito profundos na forma como o território foi ocupado. Além da grande migração para as cidades, houve uma mudança cultural no campo, que passou a ser marginalizado, de certa forma esquecido, já que o governante venezuelano poderia resolver o problema alimentar, ou tentou resolvê-lo, por meio da importação de alimentos ou pela renda, que era uma espécie de saída difícil, que nos tornava mais vulneráveis e dependentes ao perder a soberania alimentar.
A Venezuela tem mais de 30 milhões de hectares aptos para plantio, grandes bacias hidrográficas e enormes fontes de água que a colocam entre os dez países com mais reservas de água doce do mundo, e vemos como tudo isso contrasta com este atual país que, devido ao modelo do extrativismo petrolífero, passou a figurar na lista dos países com pior segurança alimentar, ao lado de Somália, Haiti e outros países que passaram por conhecidos processos de fome.
Recordamos que, nos tempos do populista Carlos Andrés Pérez, uma queda nos preços do petróleo obrigou a ajustes que levaram a uma enorme mobilização social que teve como epílogo o trágico acontecimento conhecido como “el caracazo”. A atual crise política e econômica, portanto, não pode ser atribuída apenas ao modelo bolivariano, fundado por Hugo Chávez. Parece que a dependência do petróleo inviabiliza qualquer projeto político. É assim?
Eu gostaria de mencionar duas coisas importantes que são elementos centrais do debate, que não têm a ver apenas com a Venezuela, com a América Latina, mas são questões globais. A primeira questão fundamental é que não só a gestão do extrativismo petrolífero foi mal administrada, mas também é um problema estrutural das economias petrolíferas. A Venezuela tem sido um caso emblemático para estudar os efeitos das economias petrolíferas, todas elas com tendência à hiperconcentração petrolífera tanto a nível do poder político como do poder econômico, e a gerar sociedades profundamente rentistas, dependentes e com altíssimos impactos. Estudos revelam que as sociedades baseadas no petróleo são absolutamente inviáveis.
O outro elemento prende-se com o facto de a crise global que vivemos, de profundas dimensões, com alterações climáticas, perda de biodiversidade, grandes desigualdades sociais, ser sustentada por um sistema baseado num padrão energético que é o dos combustíveis fósseis. Em outras palavras, não estamos falando apenas de economias baseadas em hidrocarbonetos, mas de um sistema global baseado em um padrão energético que devemos questionar.
E especificamente sobre a Venezuela?
Aqui vamos nós. Em relação à Venezuela, devemos nos separar das duas visões que ocupam a mídia sobre nosso país. Um é o que coloca toda a responsabilidade pela crise no governo bolivariano, e o outro é o que coloca toda a responsabilidade no império dos Estados Unidos. São leituras que, aliás, focam tudo exclusivamente na ação política, e deixam de fora muitos fatores.
Para entender o que aconteceu nos últimos anos na Venezuela, é preciso ver o contexto histórico, essa passagem de mais de 100 anos de construção de uma economia absolutamente dependente e centrada no petróleo, e seu colapso na década de oitenta em tempos de "caracazo", e depois aquela crise insustentável dos anos noventa que é quando Chávez emerge como figura política.
Mas a questão fundamental é que, apesar das divergências narrativas sobre algumas políticas de maior inclusão e distribuição de renda, Chávez reproduziu o modelo extrativista criticado pelo mais lúcido pensamento político e econômico do país, e que o próprio Chávez havia denunciado em seu primeiro anos de governo. O que aprofundou uma longa crise histórica.
O poder hegemônico mundial aliado às decisões políticas do país explicariam a situação extrema da Venezuela?
O que temos é uma longa confluência de fatores que são históricos e estruturais. Onde a responsabilidade do governo bolivariano é indubitável e a principal. E deve-se notar que é responsabilidade tanto do governo de Chávez quanto de Maduro, além do papel muito lamentável dos setores da oposição que nada têm aportado como alternativa.
A isto devemos acrescentar a ingerência internacional, que intensificou permanentemente os profundos descontentamentos e contradições internas. Não se trata apenas da interferência dos Estados Unidos, mas também do papel que a China desempenhou no aprofundamento desses problemas de extrativismo e rentismo, o papel que a Rússia desempenhou, o papel que a Colômbia desempenhou antes do Petro, o de toda a Bloco latino-americano vinculado aos Estados Unidos. E o papel que Cuba desempenhou, também, que é menos falado, porque embora Cuba tenha tido um papel positivo com seu apoio no setor de saúde e em outras políticas sociais, também houve interferência de sua parte em decisões cruciais e fundamentais que tiveram um impacto negativo.
Seria então a revolução decolonial a única revolução verdadeira e possível?
A tradição do pensamento dominante de esquerda situa a revolução na tomada do poder do Estado, e com isso está longe de falar de uma transformação profunda da sociedade. No caso venezuelano, uma primeira etapa deveria ter sido sair dessa vulnerabilidade econômica, política e cultural que temos. Acima de tudo, num contexto geopolítico de disputas, onde se o seu país estiver mais vulnerável do que antes, você conseguirá muito pouco.
Agora, certamente uma revolução tem a ver com o decolonial, que consiste em sair da opção extrativista, seguramente capitalista, e retirar os fundamentos da sociedade. Este é um apelo a todos os governos progressistas que foram e são neste momento. Se acabarmos ocupando a mesma estrutura histórica colonial e decolonial apenas para fazer uma distribuição de renda mais equitativa, ou fazer certos ajustes cosméticos e algumas reformas políticas, com a mesma estrutura, o mais provável é que não consigamos fazer uma profunda transformação, e que antes acabemos por aprofundar os velhos males.
Como você define politicamente o extrativismo?
O extrativismo é fundamentalmente uma expressão colonial e neocolonial de um processo histórico global. Aprofundar o extrativismo e falar em transformação da sociedade é uma afirmação contraditória, não faz sentido. O extrativismo é a conexão fundamental com o voraz sistema capitalista global. É o oposto da soberania alimentar.
E o norte global, a China e a Rússia não se importam de forma alguma que nos tornemos uma grande zona de sacrifício, porque o que eles precisam é extrair os recursos. Somos nós que precisamos urgentemente defender nossa soberania, mas devemos pensar essa soberania a partir de outras chaves que não as do extrativismo.
Como se deu a transição para a mineração no chamado Arco da Mineração, após a derrocada do petróleo? Isso ocorre a Chávez ou já era latente antes de ele promovê-lo?
Isso responde a padrões de expansão capitalista que se repetem em todo o mundo, mas vou me referir à América Latina. O extrativismo, desde o momento em que se implanta no território até acabar com os recursos locais, desenvolve um processo de terra arrasada onde esgota os territórios em sua produtividade e fertilidade ecológica, e também nas populações que se encontram nos territórios objeto da atividade extrativa. Onde não é por acaso que se geram debalanços sociais entre as comunidades que ali vivem.
Nos campos de petróleo, um exemplo é Cabimas, cidade que foi uma das principais cidades da Venezuela e hoje é uma cidade destruída, com alto índice de depressão. Nós a visitamos, uma cidade cheia de azeite nas ruas, nas paredes das casas, nas águas, nos peixes que saem cheios de azeite. O mesmo acontece com os territórios mineradores. É extraído até a exaustão. E a partir desse esgotamento se expande a busca por novas fronteiras de extração.
Essa é a realidade em toda a América Latina no século XXI, e nessa busca por novas fronteiras, a Amazônia é hoje uma dessas fronteiras.
O modelo original do petróleo venezuelano territorializou o extrativismo principalmente ao norte do rio Orinoco, onde estão as principais bacias petrolíferas. Essas bacias, após cem anos de exploração de petróleo convencional, médio e leve, estão em declínio, o que faz com que o extrativismo histórico há muito tempo busque novas fronteiras para commodities . E então, o extrativismo venezuelano propôs a colonização da Amazônia como nunca antes. Onde não se trata mais de petróleo, mas de mineração.
É um processo cíclico. Assim como o esgotamento do modelo petrolífero gerou uma conhecida comoção social no mundo, como o “caracazo”, esse mesmo modelo de acumulação capitalista em crise nos obriga a caminhar rumo a novas fronteiras. Isso começou na década de 1990 sob o governo do presidente social cristão Rafael Caldera, que aprovou leis para mineração na Amazônia venezuelana. O que aconteceu, e vale ressaltar, é que as mobilizações ambientalistas na década de 1990 contra a mineração de ouro em Imataca, na Amazônia venezuelana, permitiram a paralisação temporária do projeto Caldera. A chamada quarta república, o Pacto de Punto Fijo, tudo o que veio antes de Chávez parou.
E Chávez?
Chávez chegou ao Palácio de Miraflores com promessas ambientais, com promessas explícitas sobre a proteção de Imataca, mas aconteceu que, anos depois, esse mesmo Chávez é quem legaliza a mineração na Amazônia e divide as comunidades indígenas que se recusaram a minerar. E é Chávez – não foram os governos neoliberais dos anos 1990 – quem acabou de oficializar um grande projeto extrativista de mineração que chamou de Arco Mineiro do Orinoco, que cobre um enorme cinturão da Amazônia venezuelana com uma extensão de 112 mil quilômetros quadrados que é equivalente, para se ter uma ideia, à extensão de toda a ilha de Cuba. É um megaprojeto que implica a devastação severa da Amazônia e corresponde a esta nova geografia venezuelana do extrativismo.
Como isso se desenvolve?
É o governo bolivariano que assume, formaliza e promove as novas formas de intervenção extrativista na Venezuela, com um projeto de pilhagem que hoje é fundamentalmente um projeto de mineração ilegal, baseado nas economias ilegais de grupos armados, que está levando a Venezuela a um extrativismo dinâmica entre 30 e 35 toneladas de ouro por ano, algo que nunca havia sido registrado no país. E estamos falando também do ouro sangrento, que está colocando em xeque a vida de muitos povos indígenas da Amazônia e nos caracterizando como agentes de um extrativismo que não só é predatório, como sempre é, mas também saqueador, caos, violência, algo sem precedentes na Venezuela, pelo menos nesta escala.
Como vinculamos a corrupção a tudo isso?
Se olharmos para o que seriam originalmente pequenas fontes de extração mineral, que hoje evoluíram do garimpo artesanal para o garimpo de grupos armados, tudo isso se confunde com a corrupção de grupos militares no Estado. Esses grupos dão permissão ou gerenciam diretamente as minas na Amazônia, ou são cúmplices de toda essa devastação. Porque o nível de expansão gerado por essas atividades atingiu tais extremos que é impossível supor que não existam altos níveis de cumplicidade do Estado.
A mineração legal de ouro não existe na Venezuela, não há indústria formal, e a apropriação mineira que chega ao Banco Central da Venezuela ocorre através da profunda corrupção das instituições do Estado.
Aqui está uma conexão interessante. Porque esse extrativismo altamente predatório responde a um processo de decomposição política na Venezuela que, entre outras razões, é porque o famoso petroestado entrou em colapso, e o que temos em seu lugar é um estado profundamente feudalizado, corrompido e penetrado por lógicas criminosas que respondem justamente a esse extrativismo predatório. E vice-versa, o extrativismo predatório responde a essa política predatória.
Como tudo isso funciona?
Deve-se levar em conta que, na Venezuela, os canais de mediação regular e formal foram completamente destruídos, e ela é governada por meio de um autoritarismo absoluto e uma tremenda destruição das bases sociais. Estamos numa espécie de regime de guerra, e o extrativismo funciona como uma economia de guerra, onde a população fica completamente desprotegida, e os únicos canais de proteção que existem são os apelos aos direitos humanos que são canalizados através de organismos internacionais. E talvez formas, mecanismos de autodefesa, que a população se dá. Mas, o contexto político é profundamente corrupto e desinstitucionalizado.
Além disso, ainda estamos em uma grave crise política, e não é verdade que estamos em um processo de recuperação econômica, como dizem. O que existe é uma espécie de miragem porque há mais dinheiro em circulação. E não é verdade que há recuperação porque os problemas subjacentes ainda estão lá. E, ainda, imerso em uma estrutura que aprofundou de forma extrema as desigualdades sociais.
É provável, segundo uma pesquisa da ENCOVI, que tenhamos o coeficiente de desigualdade de Gini mais alto da América Latina. Ou seja, o pior, e que estamos falando da economia mais desigual da região.
Imagina saídas?
Não vou romantizar, mas vou destacar alternativas que existem. Internamente, o país vive um processo de readequação político-cultural, no qual destaco o que está acontecendo na sociedade civil. Acontece que, desde o ano passado, vem ocorrendo uma série de protestos e mobilizações por todo o país, que têm um caráter que não tínhamos visto, com maior organização, com maior consciência e construção de projetos, e com maior autonomia. Não são mobilizações que estão sendo promovidas nem pelo governo nem pela oposição, e nos últimos meses vêm priorizando o que se chama de salários. E esse processo se soma a um profundo mal-estar político, e onde também aparecem alguns traços ambientais, algumas preocupações com a Amazônia, o Arco Mineiro e com os povos indígenas.
É difícil saber para onde esse processo está levando, mas ele mostra traços claros de outros códigos políticos
Nisso há uma enorme coincidência com os movimentos que ocorreram no Chile, na Colômbia e agora no Peru, onde não há liderança e há uma enorme desconfiança em relação à liderança política tradicional. Na Venezuela, 70% da população não se identifica com nenhum dos partidos políticos dominantes. As pessoas estão cansadas desses setores, e isso incentiva a saída para as ruas, para mobilizações com maior autonomia. O nível de massividade do Peru não foi alcançado, ou como ocorreu no Chile e na Colômbia, mas é uma questão de contrastá-lo com a situação anterior da Venezuela e há uma mudança aí, e possivelmente podemos pensar em um processo de mudança da cultura política que estamos vendo nos pequenos partidos políticos de base, o que configura produções inéditas que possivelmente podem gerar.
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“Hugo Chávez reproduziu o modelo extrativista que ele mesmo havia denunciado” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU